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sexta-feira, 30 de outubro de 2009

O cheiro que a sociedade exala

Para variar, hoje, um conto "fictício":


Ao entrar em um ônibus lotado quase sem espaço e sem ar para se compartilhar o empurra-empurra é algo cotidiano. Desta vez, porém, estava sentado mais ao fundo. Preparando meu espírito para as quase duas horas até chegar em casa pelo menos dessa vez seria sentado. Isso se não ceder meu lugar para alguém mais 'necessitado'.
O andar de uma carruagem seria muito mais veloz, mas nem por isso eu tento me preocupar. A questão do meu assento é mais prioritária. Chega uma senhora idosa, mas ela consegue um lugar mais à frente. Uma grávida se dirige até minha poltrona, ainda bem que tem um lugar vazio ao meu lado. Pronto, o resto pode ir à pé sem maiores problemas, pelo visto vou conseguir ir sentado hoje. Olhando em volta para aqueles olhares cansados e desanimados imagino que minha cara também esteja naquele estado, se não pior. Talvez bem pior. E olha que o dia nem foi tão puxado. Mas já é a rotina ter o ar envolto de cansaço.
Nem dez minutos se passaram e a distância não deve ter passado de uns quinhentos metros. De repente a porta do ônibus se abre e ninguém desce. Ao contrário um ser começa com dificuldades a subir as escadas. O ar vai mudando de figura, daquela sensação existente vai se sobrepondo outra. Uma espécie de indignação, desespero e desânimo. Junto um cheiro de algo comparado a um ralo de banheiro entupido.
Olha a sua volta, olha, mas sem ver e também sem ser visto. Um lugar vaga e é justamente na minha frente, putz penso eu e posso ouvir quase todos em volta dizerem quase o mesmo. Logo depois penso que esse é um pensamento vergonhoso de se ter. Por que ele não pode ter o mesmo direito de estar aí, sentado na minha frente e com o cheiro mais puro da sociedade moderna? E esse cheiro no ar é também o cheiro da hipocrisia que a sociedade finge que não vê.
Apesar das caras feias, das tentativas de taparem os narizes e de reações adversas semelhantes, as pessoas tentam ignorar ao máximo. Logo penso também que ambos os pensamentos que tive antes foram exagerados. Talvez a sociedade não tenha culpa, pelo menos não nós pobres coitados que temos que compartilhar uma lata de sardinha para nos locomover.

Enquanto a viagem vai caminhando e as pessoas tentam se acostumar, umas ainda mostram uma indignidade e descontentamento velados, outras buscam ignorar e tentar agir o mais naturalmente exceto quando o ar é mais adensado e o vento vindo das janelas se torna insuficiente. Até aí sem problemas, mais meia hora e minha viagem termina. Pessoas que vão atingindo seu destino parecem ter a face mais aliviada só pelo fato de estar perto da porta e de já não terem mais que aguentar o cheiro da sociedade.
Os lugares vão ficando vagos, quase ninguém quer chegar perto da figura que exala o cheiro da sociedade, uma senhora distraída se posiciona bem ao lado do sujeito. Fico contando o tempo e observando o olhar e a expressão da senhora.
Nos primeiros segundos tudo bem, mas logo ela começa a sentir algo diferente, sua expressão vai mudando. Olha para os lados, não vê nada. Olha para trás, nada. Até confere os sapatos para ver se não havia pisado em nada, ainda nada. De repente sua percepção parece aumentar e olha finalmente para a criatura que havia evitado. O olhar e a cara de nojo como tantas outras já haviam feito antes.
Exatamente dois minutos e quarenta segundos e a mulher vai o mais longe possível. A senhora grávida ao meu lado está quase desmaiando. Acho que os sentidos estão mais aguçados, mas até aí ela tentou se portar da forma mais natural possível. Um ponto depois, ela desce. Outra pessoa mais à frente já não suporta mais e desce também, ou será que chegou ao seu destino? Não sei, talvez nunca saberei, mas não importa.
Um casal se dirige para o local que já está virando uma zona temida e evitada, apenas algumas figuras permanecem, eu inclusive. Mas não sei se era por preguiça ou pela situação que estava suscitando tantas indagações. O casal parece apaixonado, nem percebe em que lugar estão sentando. É justamente atrás do lugar que já está virando uma quarentena sem nem precisar de aviso.
As caretas continuam, o desespero por um lado aumenta, a tentativa de agir normalidade também. Mas independentemente das escolhas e reações das pessoas a unanimidade é ignorar o "incômodo". E até a metade da viagem, ninguém incomodou ou foi incomodada diretamente pela pessoa. O cheiro parece ser a única coisa, mas já está se tornando para algumas criaturas, demais. Está se impregnado e se espalhando.
Eu olho para as pessoas nos olhos, não sei que expressão fiz, tentei ser o mais neutro, tentei olhar sem preconceito. 
Uma fração de segundo nosso olhos se encontram. Posso estar enganado, mas via um feixe de luz muito pequeno, indicava um pouco de vida no olhar do cidadão ignorado. As marcar no rosto e a feição mais cansada que a minha, mostram uma vida dura e de sofrimento. Um tempo em que os preconceitos e as dificuldades ficaram para sempre marcados.Essa fração de segundo passa a reação foi de abaixar a cabeça envergonhada de ambos os lados, mas da outra parte pareceu maior que a minha.
Não pude deixar de achar uma certa ironia, agora eu estava sendo evitado, vai saber. Como existem loucos por essa cidade, talvez possa ser para evitar alguma reação de indignidade ou violência da minha parte. Não dá para saber ou mesmo conhecer as pessoas que dividem esta viagem.
Isso se confirma com a explosão do senhor apaixonado. Nem dez minutos haviam se passado e ele grita em alto em bom som: "Nossa, tem algum esgoto a céu aberto?!". "Que fedor, hein?!" A namorada concorda, talvez não com palavras, mas certamente sua expressão de nojo era bem maior que qualquer outra na condução. Olhando com mais atenção para o casal percebi que eram religiosos, pelo menos os apetrechos que usavam assim indicavam. A reação começou a ser maior e não vale a pena reproduzir, olhando para o lado via algumas cabeças balançando. Muitas em concordância.
Não sei se isso levou a alguma reação ou se já era o ponto da pessoa que motivou esse conto, mas ela se levanta e desce no próximo ponto. Um novo encontro de olhar e a luz que já era pouca, parece diminuir. Talvez tenha sido só uma sombra, não tenho como saber. O cheiro da sociedade continua pairando no ar. Acreditei que a hipocrisia era mais forte que o próprio cheiro da sociedade.
Nem cinco minutos depois da manifestação de incômodo, o casal desce. Isso, realmente me incomodou mais que qualquer outra coisa da viagem. Mas ficar indignado não levaria a nada. Vou escrever essa situação, pensei eu....
Para muitos isso pode ser considerado um conto, uma fábula, algo com uma moral por trás ou não. Quem sabe um dia essa situação seja apenas um mito ou uma lenda....






Um comentário:

Arquivo do Museu de Salto disse...

Nossa... sou suspeita mas esse conto da vida real foi genial.